Arquivo da categoria ‘Em África…’
O hábito de carregar coisas na cabeça é bastante difundido em toda África, e em Moçambique não é diferente. Homens, mulheres, crianças e velhos, todos adquirem uma incrível capacidade de carregar os mais variados objetos. Já vi uma vendedora ambulante carregando: Uma mesa, dois tamboretes, uma bacia com badias (um bolinho de feijão, primo do acarajé, imagino), outra bacia com “bolinhos” (doces, de farinha de trigo, parece com bolinho de chuva) e uma pequena trouxa de capulana. Ela caminhava com impressionante altivez, animadamente falando em uma língua desconhecida para mim. É bonito e elegante, mas revela a necessidade de caminhar longas distâncias sem conseguir transporte apropriado.
Na prática clínica raramente encontro sinais que infiram nocividade a esta modalidade, aparentemente cargas progressivamente maiores, fortalecem a musculatura paravertebral e abdominal mantendo as vértebras em alinhamento saudável. Outro aspecto positivo é a postura de fazer inveja aos esquálidos modelos de beleza, que treinam com livros sobre a cabeça e sempre fora delas.
Exemplos não faltam, para ilustrar vejam uma senhora fotografada pela Fran, na aldeia de Nkolongue.

foto: Franciane Fardin Sacramento
Esta outra é em algum lugar há 18 Km de Meponda, pouco depois de espantarem uma família de macacos.

Olha aí os macacos…rsrsrsr

Um Abraço…
Rafa
Sem dúvida, definir um termo de uso popular, massificado e não hermético é uma tarefa impossível. Mas, aceito o “suave” desafio feito por um amigo em um comentário sobre a postagem anterior e me remeto a difícil tarefa de revisitar este tema.
Comecei a pensar teoricamente nos conceitos de saúde, doença, vida e morte nas aulas de Psicologia Médica (obrigado Profª Dina). Lacan parecia tão realista que não deixava dúvidas. Depois, me convenci que Freud é que tinha razão, a busca pelo equilíbrio do Ego é o foco. Hoje, vivo profundamente influenciado por conceitos de cura adquiridos na prática clínica, diretamente em contato com os conceitos subjetivos que os pacientes manifestam e com o conceito objetivo da Infectologia moderna.
Sendo um conceito dinâmico e variável, dependente do contexto e da doença em questão, ficam aqui alguns exemplos de sua interpretação:
“Um quadro de fobia, por exemplo, pode ter causas completamente diferentes de um indivíduo para o outro, assim como a “cura” de uma fobia é impossível de ser submetida a protocolos metodológicos sistemáticos ou a técnicas repetíveis, válidas para todos os casos de fobia. As “causas” como as “curas” em psicanálise podem ter várias histórias, várias narrativas pragmaticamente eficientes, e só quando empacotamos as pessoas no leito de Procusto das teorias, conseguimos tornar palatável uma idéia de “cura” semelhante à idéia de “cura” em medicina.” (in: A cura: do ideal à realidade. Entrevista com Jurandir Freire Costa. Cadernos de Psicanálise do Circulo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Ano 18, 1996, p. 34-40.)
O conceito psicanalítico de cura se aproxima muito da “cura” que poderia ser atribuída ao conforto que o tratamento do curandeiro pode oferecer. Claro que Psicanálise não guarda quase nenhuma semelhança com o curandeirismo. Mas o efeito desejado sim, ainda que tecnicamente o curandeiro não o saiba.
“The grammatical definition of cure is a ‘restoration to health or good condition’ although in the clinical setting may be defined in a number of different ways. Subjective cure is the resolution of reported clinical symptoms whereas objective cure describes the outcome of repeat laboratory testing. (…)” (in: Robinson, Dudley MRCOG; Anders, Kate; Cardozo, Linda MD, FRCOG; Bidmead, John MRCOG; Dixon, Andrea; Balmforth, James MRCOG; Rufford, Jane Journal of Pelvic Medicine & Surgery: November/December 2003 – Volume 9 – Issue 6 – pp 273-277)
Quando o assunto é uma infecção, uma doença causada pela presença e atuação de um agente conhecido e identificado por comprovação laboratorial, fica muito difícil aceitar que a sua “cura” não exija a comprovação laboratorial da ausência deste.
Acredito que este conceito de cura seja bem moderno. Pode ter embrionado em mentes como a de John Snow, Robert Koch, Louis Pasteur e Ferdinand Cohn e ter nascido logo após a Segunda Guerra Mundial.
Depois do estabelecimento de critérios de cura para doenças como a Tuberculose, Hanseníase etc. já não resta dúvidas, para considerar uma doença infecciosa curada é necessário fazer controle de cura com a ausência do agente em questão.
Enfim, a doença causada pelo HIV não tem cura, simplesmente por que ninguém conseguiu eliminar (e provar, cientificamente, que eliminou) o vírus do corpo humano. AIDS tem tratamento, alopático, com um monte de medicamentos cada vez mais eficientes. O suporte psicológico e religioso é cada vez mais valorizado e respeitado. Mas, mentira, não ajuda em nada.
Um forte abraço
Rafa
Estamos em Moçambique, na África Austral, um dos países mais lesados pela epidemia do HIV. Temos menos de 1.000 médicos atuando e destes, menos ainda no trato direto com o paciente. Por outro lado temos cerca de 70.000 curandeiros em atividade em todo o país.
Em quase todas as culturas, principalmente as menos “cientificistas”, é muito comum a profunda ligação entre religião e saúde. Quanto menos a ciência entende um evento mais, se atribui a ele uma origem sobrenatural. É assim com o “Deus Sol” é assim com o milagre do Papa… O fato é que a cultura religiosa sempre envolve a busca pela cura, seja ela física, moral ou espiritual. Criticar o curandeirismo sem entende-lo é mera prova de ignorância, porém o charlatanismo coexiste e não é difícil de identificar…
“Não se pode reduzir uma cultura a um dos seus traços culturais mais negativos, esquecendo deliberadamente, por cego etnocentrismo ou por ignorância, toda a sua complexidade. Também não podemos basear-nos em experiências isoladas, em dados fora do contexto cultural ou em factos anedóticos que facilmente criam uma caricatura do povo em questão. Das culturas é necessário ter um conhecimento adequado e profundo, que compreenda tanto os elementos positivos como os negativos.” (Fernando Lerma Martinez, Antropologia Cultural, Paulinas Moçambique, 2009, 6ªEd. pág. 25)
Apesar do meu profundo respeito por toda forma de cultura, não posso negar o etnocentrismo inerente a todo aquele que é estrangeiro, por isso tenho o cuidado de compartimentalizar fielmente o campo de minha crítica. E é este exclusivamente a afirmação hedionda de que o curandeiro pode curar o HIV. Digo ser impossível ao curandeiro curar (eliminando o vírus do HIV do corpo) por um motivo muito simples, em 14 meses trabalhando aqui, nunca vi nenhum curado.

O curanderismo é uma forma eficiente de aplacar os aspectos emocionais, mas não pode ser elevado ao estado de ciência como alguns defendem. Alguns curandeiros são “realistas” em relação ao seu campo de atuação, mas acredito que, em sua maioria sejam charlatões, em maior ou menor grau.
Os “medicamentos” usados, além da sugestão gerada de maneira teatral, são em geral, ervas, tubérculos e poções. Além das “vacinas” que são pequenos cortes feitos no corpo do paciente, geralmente com uma lamina de barbear, muitas vezes reaproveitada.


Encontramos este anúncio de um “consultório” caminhando pelo bairro de Chiuaula, em Lichinga.
Dizer que isto é charlatanismo, é pouco. O que eles fazem é desumano.
É verdade que nem sempre a alopatia é capaz de “curar” ou aliviar a dor. As vezes sentamos a cabeceira e damos a mão como conforto. O limite existe, ainda mais em um contexto onde falta o básico em termos de medicamentos e tecnologia. Mas, isso não pode ser desculpa para que alguns se aproveitem do sofrimento alheio…
São vendedores de fumaça…
Sem abraço hoje.
Rafa
Um dia desses, eu estava calmamente estudando alguns prontuários, na verdade eu procurava sinais de “fraca adesão”, que é uma maneira de dizer que o paciente não vem seguindo corretamente o tratamento. E de “falência terapêutica” que é quando o tratamento com um determinado esquema de antirretrovirais já não funciona mais, quando me pediram para atender uma senhora do Malawi (HIV negativo) que não falava nem o Cyao (idioma local) nem nenhum outro conhecido pela equipe. Aliás, alguns falam até 5 idiomas, verdadeiros poliglotas.
Sendo o Inglês o campo eleito, iniciamos o corolário de metáforas e interjeições que ilustram a maioria das consultas por aqui. Engraçado é lembrar que o diagnóstico e o tratamento foram, respectivamente, identificado e elaborado em menos de 2 minutos, mas a consulta se prolongou por quase 30 minutos. Tudo devido a incrível capacidade de síntese desta senhora, já que se não fosse sintética, me ocuparia duas vidas para contar apenas uma.
Resumindo…
Ela viajava a pé de Chitipa, no norte do Malawi até Marrupa! Vejam a rota aproximada:
Seguia muito bem vestida e adequadamente agasalhada (muito frio em julho de 2010), com 5 ou 6 capulanas, mais uma que servia para carregar a bagagem em
uma trouxa, ora amarrada nas costas, ora na ponta de um cajado, como nos desenhos animados.
Educadamente, pedi que me mostrasse o conteúdo de uma “mala” que parecia tão leve e nem fiquei muito surpreso quando vi o que ela levava:
1 capulana, sim mais uma, agora são 7 ou 8
1 panela pequena
1 lata de leite ninho (aqui chama Nido)
1 par de sandálias (com a alça partida no pé esquerdo)
1 colar de contas
1 livreto do Novo Testamento
1 saquinho com 3 comprimidos brancos (ela garantia ser Ibuprofeno)
2 unidades de batata doce
Esse era o suprimento que esta senhora carregava em uma viagem de 1.160Km, a pé e sem documentos.
Fiquei sem entender o motivo de uma viagem tão penosa, parecia um assunto de família. O que valeu foi a incrível ausência de equipamentos. Me senti frágil perto de tanta força e bom humor e levei comigo um pouco daquela energia contagiante.

Foto de João Correia
Ah, antes que eu me esqueça… O motivo da consulta foi dor nos pés, o diagnóstico foi artrite em ambos os tornozelos e o tratamento foi Ibuprofeno e repouso. Mas, eu a vi seguir andando.
Um abraço cansado. (daqueles que a gente sente o peso)
Rafa
As vezes o que dizemos inspira!
Alguns são abençoados com o eco das palavras… E não digo isso apenas para as grandes frases de efeito, que podem acabar condenadas ao lugar comum. Digo isso realmente às palavras que marcam.

Para que serviria a luta se continuássemos submetidos ao trabalho forçado, às companhias, às minas, mesmo se tudo estiver cheio
de gerentes e capatazes africanos? Para quê o sacrifício se continuarmos a ser obrigados a vender o gado
e o algodão, em feiras que só beneficiam os comerciantes, mesmo se estes forem africanos? Qual a razão de ser de
tanto sangue, se no fim continuássemos submetidos a um Estado que, mesmo se governado por moçambicanos, só
serve os ricos e poderosos? Como manter uma polícia que prende e tortura os trabalhadores, guardar um exército que
dispara contra o povo, mesmo se todos os generais forem pretos?
Samora Machel
Eu realmente acho que a liberdade não pode ser ensinada ou explicada, ela precisa ser sentida e respeitada…
Forte Abraço.
Rafa
O “Pai” nada escreveu, mas o que dele mais aprendeu sim!
Espero que os que vierem aqui se sintam sob o céu que nunca se repete. Lichinga é uma cidade inesquecível. E aos poucos vou contar por que…
Estamos na capital da província moçambicana do Niassa, bem ao norte. Banhada pelo Lago Niassa é rural e tranquila.
Foi aqui que conheci pessoalmente o Baobá, eu já conhecia a sua existência desde a primeira vez que li “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry e continuo fascinado por esta espécie mítica de árvores que parecem fugidas de um sonho. Agora que tenho muitas por perto, descobri que existem algumas no Brasil, inclusive na cidade do Rio de Janeiro.
Essa, vive perto da praia de Chiwanga…

E vive mesmo. Apesar de já estar deitado há mais de 10 anos continua vivo e fértil!
Um forte Abraço.
Rafa