Sem dúvida, definir um termo de uso popular, massificado e não hermético é uma tarefa impossível. Mas, aceito o “suave” desafio feito por um amigo em um comentário sobre a postagem anterior e me remeto a difícil tarefa de revisitar este tema.
Comecei a pensar teoricamente nos conceitos de saúde, doença, vida e morte nas aulas de Psicologia Médica (obrigado Profª Dina). Lacan parecia tão realista que não deixava dúvidas. Depois, me convenci que Freud é que tinha razão, a busca pelo equilíbrio do Ego é o foco. Hoje, vivo profundamente influenciado por conceitos de cura adquiridos na prática clínica, diretamente em contato com os conceitos subjetivos que os pacientes manifestam e com o conceito objetivo da Infectologia moderna.
Sendo um conceito dinâmico e variável, dependente do contexto e da doença em questão, ficam aqui alguns exemplos de sua interpretação:
“Um quadro de fobia, por exemplo, pode ter causas completamente diferentes de um indivíduo para o outro, assim como a “cura” de uma fobia é impossível de ser submetida a protocolos metodológicos sistemáticos ou a técnicas repetíveis, válidas para todos os casos de fobia. As “causas” como as “curas” em psicanálise podem ter várias histórias, várias narrativas pragmaticamente eficientes, e só quando empacotamos as pessoas no leito de Procusto das teorias, conseguimos tornar palatável uma idéia de “cura” semelhante à idéia de “cura” em medicina.” (in: A cura: do ideal à realidade. Entrevista com Jurandir Freire Costa. Cadernos de Psicanálise do Circulo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Ano 18, 1996, p. 34-40.)
O conceito psicanalítico de cura se aproxima muito da “cura” que poderia ser atribuída ao conforto que o tratamento do curandeiro pode oferecer. Claro que Psicanálise não guarda quase nenhuma semelhança com o curandeirismo. Mas o efeito desejado sim, ainda que tecnicamente o curandeiro não o saiba.
“The grammatical definition of cure is a ‘restoration to health or good condition’ although in the clinical setting may be defined in a number of different ways. Subjective cure is the resolution of reported clinical symptoms whereas objective cure describes the outcome of repeat laboratory testing. (…)” (in: Robinson, Dudley MRCOG; Anders, Kate; Cardozo, Linda MD, FRCOG; Bidmead, John MRCOG; Dixon, Andrea; Balmforth, James MRCOG; Rufford, Jane Journal of Pelvic Medicine & Surgery: November/December 2003 – Volume 9 – Issue 6 – pp 273-277)
Quando o assunto é uma infecção, uma doença causada pela presença e atuação de um agente conhecido e identificado por comprovação laboratorial, fica muito difícil aceitar que a sua “cura” não exija a comprovação laboratorial da ausência deste.
Acredito que este conceito de cura seja bem moderno. Pode ter embrionado em mentes como a de John Snow, Robert Koch, Louis Pasteur e Ferdinand Cohn e ter nascido logo após a Segunda Guerra Mundial.
Depois do estabelecimento de critérios de cura para doenças como a Tuberculose, Hanseníase etc. já não resta dúvidas, para considerar uma doença infecciosa curada é necessário fazer controle de cura com a ausência do agente em questão.
Enfim, a doença causada pelo HIV não tem cura, simplesmente por que ninguém conseguiu eliminar (e provar, cientificamente, que eliminou) o vírus do corpo humano. AIDS tem tratamento, alopático, com um monte de medicamentos cada vez mais eficientes. O suporte psicológico e religioso é cada vez mais valorizado e respeitado. Mas, mentira, não ajuda em nada.
Um forte abraço
Rafa
Caro Sacramento
Vc brilhante como sempre!
Seu blog está brilhante, e merece se tornar um livro!
O país precisa de sujeitos capacitados como ti!
Felicidades!
Felipe
É Rafael, quando se fala em cura, também entramos no campo da fé, da crença e de valores atribuídos a cada povo… Para nós, formados no campo da medicina ocidental, às vezes é muito difícil compreender o quanto a fé é capaz de fazer e modificar a vida de uma pessoa… ainda mais quando se fala de uma doença, que para nós não tem cura…
A fé e a crença em algo é transcendental e muitas vezes vai além de nossa mera compreensão…
Também tenho tentado entender, através de livros de antropologia e psicologia e na prática com populações indígenas um pouco desse universo… mas ainda estou longe de entendê-lo completamente.
Abraços,
Ola Rafa! Como profissional de saúde penso que, remetendo-me ao caso brasileiro, deva-se trabalhar a partir de um aporte teórico-prático que ultrapasse a clínica (seja ela médica, psicanalítica…). Penso que deva haver um equilíbrio entre a clínica e o que define-se como “determinação social da doença.” Como assistente social observo um absoluto descaso pelas condições sócio-econômico-culturais, ignorando o quanto elas rebatem no processo saúde-doença (transporte, trabalho, saneamento básico, lazer…). No post acima, você escreve sobre um aspecto interessante da cultura africana que é o de levar objetos na cabeça… mas sabiamente relaciona a prática (a partir da observação) com a ausência de um sistema de transporte adequado! Isso é ver a saúde e a doença a partir de sua determinação social. Mas penso que em Moçambique, lugar onde a prática clínica é escassa e os recursos parcos em termos de tudo, essa discussão seja para uma próxima etapa. Acredito que as prioridades devam ser outras. Um grande abraço!
Rafael,
Vou fazer um papel de “advogado do diabo”, para que possamos pensar mais. Gosto das reflexões que levantou, pois me fazem pensar.
Sem dúvida a infecção pelo HIV não tem cura, mas… a doença pelo HIV não tem cura? Se a doença em si tem cura, a infecção deixa de ser importante. E tem gente que vive anos e anos “curado”, ainda que depois possa adoecer.
Tudo está relacionado com crença e também com conceito do que é saúde, doença, cura e até mesmo do que é morte.
Por exemplo, se para alguém ao morrer ela pode fazer mal a outra pessoa e se ela se mata para poder fazer mal para o outro, para ela, dentro do mundo dela ela só está adiantando uma fase inevitável, tendo objetivos definidos e um resultado, em sua mente, certo. Esta pessoa morreu? Talvez para mim, mas para sua comunidade, caso tenha o mesmo entendimento, não?
E como saber quem está certo??
Estes são conceitos sobre os quais teremos que refletir toda nossa vida e sempre teremos novas e distintas respostas.
Grande abraço e parabéns pelo blog!
Altamiro
Tem uma frase que ficou esquisita…
“Talvez para mim possa ter morrido, mas para sua comunidade, caso tenha o mesmo entendimento do morto, será que morreu mesmo?”
… e segue por aí…
Altamiro