Um dia desses, eu estava calmamente estudando alguns prontuários, na verdade eu procurava sinais de “fraca adesão”, que é uma maneira de dizer que o paciente não vem seguindo corretamente o tratamento. E de “falência terapêutica” que é quando o tratamento com um determinado esquema de antirretrovirais já não funciona mais, quando me pediram para atender uma senhora do Malawi (HIV negativo) que não falava nem o Cyao (idioma local) nem nenhum outro conhecido pela equipe. Aliás, alguns falam até 5 idiomas, verdadeiros poliglotas.
Sendo o Inglês o campo eleito, iniciamos o corolário de metáforas e interjeições que ilustram a maioria das consultas por aqui. Engraçado é lembrar que o diagnóstico e o tratamento foram, respectivamente, identificado e elaborado em menos de 2 minutos, mas a consulta se prolongou por quase 30 minutos. Tudo devido a incrível capacidade de síntese desta senhora, já que se não fosse sintética, me ocuparia duas vidas para contar apenas uma.
Resumindo…
Ela viajava a pé de Chitipa, no norte do Malawi até Marrupa! Vejam a rota aproximada:
Seguia muito bem vestida e adequadamente agasalhada (muito frio em julho de 2010), com 5 ou 6 capulanas, mais uma que servia para carregar a bagagem em uma trouxa, ora amarrada nas costas, ora na ponta de um cajado, como nos desenhos animados.
Educadamente, pedi que me mostrasse o conteúdo de uma “mala” que parecia tão leve e nem fiquei muito surpreso quando vi o que ela levava:
1 capulana, sim mais uma, agora são 7 ou 8
1 panela pequena
1 lata de leite ninho (aqui chama Nido)
1 par de sandálias (com a alça partida no pé esquerdo)
1 colar de contas
1 livreto do Novo Testamento
1 saquinho com 3 comprimidos brancos (ela garantia ser Ibuprofeno)
2 unidades de batata doce
Esse era o suprimento que esta senhora carregava em uma viagem de 1.160Km, a pé e sem documentos.
Fiquei sem entender o motivo de uma viagem tão penosa, parecia um assunto de família. O que valeu foi a incrível ausência de equipamentos. Me senti frágil perto de tanta força e bom humor e levei comigo um pouco daquela energia contagiante.
Ah, antes que eu me esqueça… O motivo da consulta foi dor nos pés, o diagnóstico foi artrite em ambos os tornozelos e o tratamento foi Ibuprofeno e repouso. Mas, eu a vi seguir andando.
Um abraço cansado. (daqueles que a gente sente o peso)
Rafa
Bem parecido com os Yanomami aqui… para eles caminhar 2 ou 3 dias seguidos, desprovidos de alimentos e algo para os abrigar do frio ou chuva é normal… o que pra gente torna-se uma jornada impossível…
Eles a cada dia nos surpreendem e nos dão lição de vida e de forma de ver o mundo…
É, a vida urbana acaba nos deixando preguiçosos. Feliz daqueles que podem, através do trabalho, encontrar formas mais simples de viver.
Querido Rafa!!!
Quero te informar que vou devorar seu Blog!!!!!!!!!!!!!!!
Fantático de conteúdo e reflexões… Um grande abraço!
Uau!! Com artrite eu também ficaria depois de andar tanto… hehehe! Que mundo, que mundo…
Excelente post!